See: surpreendente no melhor sentido da palavra

Em meio a uma quarentena devido a uma epidemia viral, que tal assistir uma série sobre o mesmo assunto?

See se passa em um futuro pós-apocalíptico onde a epidemia de um vírus mortal no século 21 reduziu a humanidade a apenas 2 milhões de pessoas e deixou todos os humanos sobreviventes cegos.

Vários séculos após o ocorrido, a humanidade regrediu a um estilo de vida tribal e a ideia de visão é apenas um mito, até mesmo falar nela é considerado heresia, uma vez que acredita-se que a cegueira que atingiu a humanidade foi um castigo de Deus para salvar o planeta.

A história se inicia com o nascimento de duas crianças gêmeas, as primeiras a nascer com o sentido da visão em 600 anos.

O mundo em See

A maneira criativa com que a série vai utilizar o elemento da cegueira já fica óbvia desde a abertura que é extremamente criativa, se utilizando de alguns sons pontuais durante a trilha musical para produzir imagens que desaparecem conforme o som desaparece, dando assim ao espectador uma pequena ideia de como uma pessoa cega que necessita do som para se guiar percebe o mundo.

Logo no início fica claro que será uma jornada repleta de tensão. Somos inseridos quase que imediatamente no meio da ação quando os guerreiros de Baba Voss (Jason Momoa) são obrigados a enfrentar o exército da Rainha Kane que está em busca dos filhos de Baba, os gêmeos acima mencionados que acabaram de nascer com visão.

Baba Voss e seus guerreiros

Essa cena de batalha inicial já é muito diferente da maioria com que estamos acostumados pelo simples fato de que todos os envolvidos são cegos e se guiam apenas pelo som e tato. Não temos uma cena dramática onde ambos os exércitos se encaram a distância e depois correm em direção um ao outro.

Aqui, eles se aproximam furtivamente um do outro, até ficarem cara-a-cara, e a luta não se inicia com um bravo grito de guerra, mas sim com dois toquinhos de um cajado no chão de pedra quando Baba julga que o inimigo está perto o suficiente.

Ao longo da série, são vários os momentos onde a ação se desenrola de formas inusitadas e eletrizantes devido a falta de visão dos envolvidos e cada momento de conflito e tensão é sempre intenso, causando muita aflição no espectador, no melhor sentido possível.

Mas não foi apenas nesse aspecto que o projeto da Apple TV me surpreendeu positivamente.

Apesar de se passar no futuro, o estilo de vida dos personagens é bem primitivo, o que fez com que eu me preparasse para a violência extrema que normalmente acompanha histórias desse tipo.

Realmente, a série é bem violenta sim, mas geralmente em momentos onde os personagens estão lutando pelas próprias vidas, em momentos onde a violência é a única saída. Ou, em algumas situações específicas para demonstrar algo que será relevante para a história, por exemplo, a forma como a Rainha Kane governa a todos com punho de ferro.

Rainha Kane interpretada por Sylvia Hoeks

Apesar da época violenta em que se passa a história, a violência ocorre na série de forma pontual e por motivos específicos, não se faz uso dela a exaustão e, muitas vezes, de forma totalmente gratuita, como, por exemplo, em Game of Thrones.

Uma vez que já foi estabelecida para o público a brutalidade necessária para sobreviver nesse mundo, ela só volta a ocorrer quando o curso natural dos acontecimentos pede por isso.

As personagens femininas

Outro fator que me surpreendeu muito foi o tratamento das personagens femininas.

Em uma história com essa temática, o que geralmente se vê é um uso excessivo de todo tipo de violência contra a mulher, principalmente, de natureza sexual, sempre com a desculpa de que é necessário para deixar mais realista.

Passei os oito episódios da série com absoluta certeza de que o estupro de alguma personagem era só questão de tempo, mas, para minha imensa felicidade, não aconteceu.

Existe sim a sugestão de que a violência sexual faz parte dessa sociedade, mas em nenhum momento ela é mostrada em cena para passar essa informação, ou usada como forma de desenvolvimento da história e dos personagens.

Outra característica comum em histórias como a de See é a objetificação constante da mulher. É um sem fim de mulheres desfilando em cena com pouca ou nenhuma roupa, única e exclusivamente para agradar ao olhar masculino.

Não acontece aqui.

Imagine a minha surpresa ao chegar ao fim da primeira temporada sem ter visto um único par de seios na tela e perceber que, por mais incrível que possa parecer (#sarcasmo), a falta deles não fez a menor diferença no desenrolar da trama ou na construção desse universo.

As mulheres são tratadas com o respeito que merecem em todos os sentidos. O que quero dizer com isso é que, apesar da narrativa acontecer em um mundo onde se esperaria uma predominância masculina, aqui encontramos um equilíbrio.

Temos pelo menos quatro personagens femininas que são totalmente diferentes entre si e essenciais para a história para três personagens masculinos de igual importância.

As narrativas dessas quatro mulheres incluem homens, mas não giram em torno deles, como geralmente é o caso.

Apesar de se tratar de uma sociedade que regrediu em muitos aspectos, temos uma história que apresenta homens e mulheres em pé de igualdade.

Em nenhum momento alguma personagem feminina é diminuída de forma alguma devido ao seu gênero, mesmo em situações de embate entre os dois sexos. As fraquezas e defeitos dos personagens nada tem a ver com seus gêneros.

Um bom exemplo de tudo isso é o fato de que muitas das mulheres também são guerreiras, mas, principalmente, a relação entre Baba Voss e as 3 mulheres em sua vida: Maghra (Hera Hilmar), sua esposa; Haniwa (Nesta Cooper), sua filha; e Paris (Alfre Woodard), uma espécie de figura materna para ele.

Baba e Maghra são parceiros em absolutamente tudo, não existe qualquer luta por dominância de nenhuma das partes, e Baba sempre busca, respeita e valoriza muito a opinião dela, assim como a de Haniwa e Paris.

O protagonista

O personagem de Jason Momoa e o próprio ator em si foram mais duas grandes surpresas. Aqui ele pôde mostrar que é capaz de ser muito mais do que apenas um brutamontes como a maioria dos personagens que geralmente interpreta.

Baba Voss é um personagem repleto de camadas. Ele é um guerreiro capaz de uma selvageria inimaginável, quando necessário; um líder firme, sem ser tirânico; um marido e pai amoroso para o qual a família vem antes de tudo.

Poucos atores conseguiriam balancear todas essas características de forma crível, e é exatamente isso que Jason Momoa faz.

Jason Momoa como Baba Voss em See

A aparência dele por si só já comanda uma presença incrível, some a isso a agressividade que o personagem tem que demonstrar constantemente para proteger sua família e é fácil imaginar um protagonista que levaria essa hostilidade para todas as áreas de sua vida, assim como é muito difícil imaginar uma pessoa assim sendo doce e carinhosa em qualquer situação, apesar disso, é a segunda opção que a série nos oferece.

A pessoa que Baba Voss é com os seus familiares é o oposto de quem ele é no campo de batalha. Não existe nenhum traço da brutalidade exigida pelas lutas.

Em momentos de tensão e discórdia com os íntimos, não há a menor sugestão de que ele possa se tornar violento de alguma forma. Não existe nenhum traço da masculinidade tóxica que geralmente vemos em personagens como esse.

Ao contrário, Baba Voss é um pai e marido que ama a esposa e os filhos e faz questão de demonstrar isso a eles, sempre de forma muito doce, cuidadosa, sincera e sensível. Jason Momoa demonstra a mesma habilidade nesses momentos mais íntimos e serenos que demonstra nos momentos de ação aos quais estamos acostumados a associá-lo.

Baba Voss e sua esposa Maghra em um momento de ternura

Créditos Finais

Apesar de toda a epicidade, em seu cerne, See é a história de um pai de família que fará tudo o que estiver ao seu alcance para proteger os filhos, ao mesmo tempo em que sabe que precisa deixá-los tomar as próprias decisões e luta para aceitar e entender o fato de que os caminhos pelos quais seguirem talvez os levem para longe.

É exatamente esse foco nos conflitos internos dos personagens e suas dinâmicas sendo refletidos pelo mundo hostil ao redor que deixa a série tão envolvente.

Todos os episódios da primeira temporada de See estão disponíveis no Apple TV.


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Melissa Piroutek

Tradutora e cineasta formada em cinema pela Faculdade Anhembi Morumbi desde 2010. Apaixonada por cinema desde criança, sócio-proprietária, produtora, diretora e roteirista da produtora independente Best Team Productions.

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