Por Dentro da Tela

Tudo precisa virar live-action?

Existem histórias que são inadaptáveis para o live-action, e “tá” tudo bem. Ainda bem que esse tipo de linguagem não consegue abraçar 100% das coisas, se não, que sentido teria outras mídias existirem?

Animação, stop motion, etc., tudo isso seria condenado ao esquecimento e perderiam o já pouco espaço que possuem.

Precisamos tirar da cabeça que adaptação live-action significa o sucesso de uma franquia. Aliás, isso é sintoma de um grave problema do cinema atual.

No extenso artigo de hoje (textão) explico porque, felizmente, existem histórias que são inadaptáveis para o live-action e para onde devemos direcionar as críticas de filmes ruins.

A lógica predatória de Hollywood

Para começar, o termo live-action é designado para toda obra audiovisual que é realizado com atores e atrizes reais, ao contrário das animações, por exemplo. Apesar disso, há obras atuais que estão numa camada cinzenta entre estas duas linguagens.

É nítido e notório o modus operandi predatório das industrias cinematográficas em Hollywood. Toda e qualquer história que chame “atenção”, rapidamente é especulada para virar um filme. Isso incluem livros, quadrinhos, mangás, videogames e até mesas de RPG que são transmitidas online.

Hollywood quer tudo!

Desde os primórdios da sétima arte, no século 19, já havia adaptação literária para o cinema. O primeiro livro foi Trilby, de 1894, escrito por Gerald du Maurier. De lá pra cá foram incontáveis adaptações da literatura, do teatro, e de qualquer expressão de arte.

Para mim, existem dois pontos que ilustram bem a lógica de Hollywood. O primeiro foi deflagrado pelo diretor Bong Joon-Ho na premiação do Globo de Ouro em 2020. Em seu discurso, o cineasta afirmou: “Quando vocês superarem a barreira de filmes com legendas, conhecerão muitos filmes incríveis”.

A indústria estadunidense se sente tão acima de todos, que ignoram produções mundiais, simplesmente por não falarem inglês.

O que corrobora com essa perspectiva de Bong Joon-Ho é o artigo da Doutora e Mestre, Isabella Goulart. Em seu trabalho intitulado “De Hollywood para os Latinos: as versões em espanhol exibidas na América Latina e a hegemonia cultural dos Estados Unidos”, ela expõe a visão caricata dos EUA para com os outros povos americanos.

A seguir, deixo o resumo do artigo e o link ao final deste texto:

"O artigo aborda as versões em espanhol de filmes originais em inglês realizados pelos estúdios hollywoodianos na passagem para o cinema falado, que foram distribuídas no Brasil. [...] Destacando a disputa assimétrica em termos de hegemonia cultural na negociação entre América Latina e Hollywood, pensamos sobre as oposições entre os Estados Unidos e a América Latina nos termos da relação Ocidente-Oriente de Edward Said, enxergando a latinidade construída por Hollywood como uma imagem da América Latina inventada pelos Estados Unidos, que revela objetivos imperialistas." (GOULART, Isabella. 2018).

Em outras palavras, os EUA “sequestra” uma obra, refaz sob sua visão cultural e entrega sob o título de “essa produção é o ápice do material original”.

O outro ponto que ilustra a lógica predatória de Hollywood é simples: dinheiro!

O Whitewashing (ou a desesperada americanização de tudo)

Quando eu afirmo que Hollywood “sequestra” obras, a verdade é que eles possuem tanto dinheiro, que fica insustentável não vender. Claro, ninguém obriga o outro a fazer isso, mas um produto de sucesso geralmente depende de outras partes, nem sempre o artista, por mais que detenha os direitos, tem uma grande autonomia para recusar a compra.

Sim, existem exemplos de pessoas que não venderam, mas a gente não sabe como funciona deixar a indústria frustrada com você. Falo de boicotes, pressão na mídia, etc.

Como vimos anteriormente, sob a visão norte-americana, a obra se submete à sua perspectiva. Isso implica em substituir, sem motivo aparente, a etnia de personagens. Por mais que isto esteja sendo debatido hoje, a lógica xenofóbica ainda está presente.

Whitewashing significa a escalação de atores brancos para papéis de personagens não-brancos. Tudo isso para atender à uma agenda de hegemonia cultural e livrar os espectadores das terríveis legendas.

Um exemplo disso é A Vigilante do Amanhã: Ghost in The Shell (2017). A protagonista que tem a origem nipônica, foi substituída por uma atriz de origem nova-iorquina.

Scarlett Johansson fez a personagem Major, protagonista da história.

E o que dizer da vindoura adaptação live-action de Akira? A primeira pré-produção dizia que a história se passaria em New Manhattan, bem longe de Neo-Tokyo. Hoje, a possível produção está nas mãos de Taika Waititi, que já disse que não desistiu do projeto.

OK, estão surgindo adaptações sem o whitewashing, mas isso é o suficiente?

A verossimilhança

Nada como a boa e velha coerência. Em termos profundos, a verossimilhança é quando intuitivamente entendemos uma realidade portadora de uma aparência da verdade.

Em outras palavras, por mais fantasioso que seja, precisamos ver coerência em um filme. Isso inclui as ações dos personagens, o andar da história, a construção visual daquele mundo, etc.

É por isso que em mãos que só enxergam o lucro, grandes histórias são alvo de críticas quando se tornam live-action. Existem vários fatores que contribui para um filme ruim, mas acima disso está a verossimilhança.

Por mais problemático que pareça, nos acostumamos com atuações de uma certa escola, de um certo método. Atuações que fogem a esta regra ficam caricatas ou apenas não convencem. Para mim, a linguagem do live-action evoca esse tipo de atuação.

É por isso que mesmo adaptações japonesas que tentam, fielmente, imitar os trejeitos dos animes, não são boas, porque o trabalho do ator ressalta na tela e causa um desconforto.

Além do que, se for para construir ipsis litteris uma linguagem idêntica ao anime, então para que adaptar para o live-action?

Eu sei que parece que estou dando pancada em todos os lados, mas prometo que vou amarrar tudo isso no final.

Uma esperança tecnológica

Outra barreira é a tecnologia. Personagens em CGI estão cada vez melhores, superando as bizarrices de produções passadas que causavam uma estranheza no espectador.

Inclusive, isso tem um nome: o vale da estranheza.

Por sermos especialistas em reconhecer o ser humano, sabemos logo de cara que um rosto está ruim. Vide O Retorno da Múmia (2001), onde o Escorpião Rei assusta a audiência mais por sua composição em 3D do que pela sua forma.

O susto não é só por ver o “The Rock”.

Ou exemplos mais recente como as séries Cavaleiro da Lua (2022) e Mulher-Hulk: Defensora de Heróis (2022). Por mais que não sejamos especialistas em CGI, intuitivamente entendemos quando algo está estranho. Seja o rosto de alguém, seja um personagem 100% fantasioso.

Apesar disso, existem bom exemplos onde a tecnologia se superou. Duna de 2021 é uma evolução ao Duna de 1984. Não só em tecnologia, mas em roteiro. Tudo ficou melhor e o tempo foi o professor mais correto possível.

Isso não quer dizer que o ápice de Duna foi sua adaptação em live-action. Lá na década de 1970, Alejandro Jodorowsky tentou adaptar a obra original para os cinemas. Sua ideia era tão ambiciosa que os estúdios recuaram diante da proposta.

O cineasta trabalhou tanto na pré-produção e na construção de seu universo visual, que no documentário Duna de Jodorowsky (2013) ele compilou seu trabalho numa HQ.

Quem sabe, se o pensamento único de transformar tudo em live-action não estivesse tanto em evidência naquela época (como hoje), uma animação seria a melhor opção. Teríamos então Duna, ao invés de Akira (1988), como o grande vanguardista das animações cinematográficas.

Duna seria um pilar na literatura de ficção cientifica (o que já é), além de um pilar na animação.

Os animes inadaptáveis

Quando digo que Cavaleiros do Zodíaco é inadaptável, quero causar duas coisas: impacto e senso crítico.

Impacto por afirma algo com grande certeza sem justificar nada; e segundo para trazer a tona que a adaptação live-action de tal obra NÃO SIGINIFICA SEU ÁPICE.

Cavaleiros do Zodíaco já é um sucesso. Existem milhares de fãs pelo mundo. Tem os mangás originais, os spin-off, animes, filmes, jogos, etc. É uma franquia de sucesso.

Ao ver no trailer A PRESENÇA DA CIA a única conclusão para isso é: é pelo dinheiro, não pela obra (além das outras problemáticas levantadas).

A mensagem de CDZ, por mais clichê e “simples” que pareça, vai se diluir nos efeitos carregados e nas armaduras horrorosas. Veja, mesmo que no futuro a tecnologia esteja perfeita para fazer as armaduras, e o roteiro seja escrito por um fã que realmente entenda da obra, para que adaptar?

O live-action então é melhor que as outras mídias? Qualquer outro formato não caberia melhor que o live-action?

Se as suas respostas foram sim e não, respectivamente, sinto muito em te dizer que você serve a logica predatória e capitalista de Hollywood…

Tudo precisa virar live-action?

Outro exemplo que gosto de dar é o anime Attack on Titan. A obra de Hajime Isayama já é um sucesso, tanto o mangá como o anime.

A tentativa em 2015 de adaptação em live-action resultou numa obra que apressa o desenvolvimento dos personagens, bem como se atrapalha em sua própria lógica1. Para Attack on Titan o formato seriado é a melhor opção.

Tendo a achar que uma série live-action até poderia ser uma boa ideia, mas as dificuldades tecnológicas, o número de episódios necessários e um bom roteiro, são barreiras que, talvez, nem o tempo dê conta.

Para além disso, achar que tudo precisa virar live-action é se abaixar à vontade capitalista de um sistema imperialista. Dar mais visibilidade para as animações (tanto 3d como 2d), animes e outras linguagens, é mais saudável e equilibrado.

Tudo não precisa virar live-action, porque tem coisas que são boas e são um sucesso em outras mídias. Entendeu Hollywood?

E tudo bem!

tudo bem gostar de Dragon Ball Evolution (2009), quem sou eu para ditar o que você pode ou não apreciar. Tranquilo também reclamar que este e outros filmes são ruins, mas para além disso, você que assim como eu não engole um produto enlatado, bora direcionar nossas forças contra o modus operandi predatório das industrias.

Ainda bem que existem obras inadaptáveis, não só por uma barreira tecnológica ou de roteiro, mas pela história não se encaixar em 90 minutos. Que bom que existem histórias assim, nem tudo está perdido.

Enxergar outras opções e outras linguagens de adaptação (acabei não falando de videogames) dão um respiro para a mesmice do entretenimento.

Felizmente, a Nintendo entendeu isso com Mario Bros. e vai lançar uma animação, ao invés de tentar ressucitar o filme de 1993.

O que você achou? Discorda? Concorda? Deixe nos comentários!

NOTAS

  1. Referência retirada do site Rotten Tomatoes.

FONTES

CORDEIRO, Tiago. Qual foi o primeiro livro a ser adaptado para o cinema?. 2016. Disponível em <https://super.abril.com.br/mundo-estranho/qual-foi-o-primeiro-livro-a-ser-adaptado-para-o-cinema/>

DEMEROV, Barbara. Globo de Ouro 2020: “Quando vocês superarem as barreiras de filmes com legendas, conhecerão muitos filmes incríveis”, afirma Bong Joon Ho, diretor de Parasita. 2020. Disponível em <https://www.adorocinema.com/noticias/filmes/noticia-152545/>

GOULART, Isabella. De Hollywood para os Latinos: as versões em espanhol exibidas na América Latina e a hegemonia cultural dos Estados Unidos. 2018. Disponível em <https://periodicos.uff.br/ciberlegenda/article/view/37982/23103>

LOUCOS POR FILMES. Live-action de “Akira” tem lançamento confirmado para 2021. Disponível em <https://www.loucosporfilmes.net/2019/05/data-lancamento-akira-adaptacao-live-action.html>

TROJAIKE, Laísa. O que é whitewashing?. 2021. Disponível em <https://canaltech.com.br/entretenimento/o-que-e-whitewashing-185696/>

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