Ok, “com grandes poderes vêm grandes responsabilidades” é uma frase batida, reutilizada de várias formas em várias obras audiovisuais, zoada por tantas outras e com boa parte do seu impacto enfraquecido devido à frequência com que a ouvimos desde o super popular Homem-Aranha (2002) de Sam Raimi.
Mas a verdade dessa frase é atemporal, as aplicações e interpretações dela são diversas e sempre há tempo para falar um pouco mais sobre a importância de se reconhecer como indivíduo na sociedade, assim como a soma das nossas experiências e aprendizados.
Peter Parker é um personagem de fácil identificação com vários públicos – não é de surpreender que o personagem segue com a popularidade em alta desde os anos 60 – simplesmente por ser um azarão. Um cara que precisa de dinheiro, que tem desilusões amorosas, que constantemente tem seu valor questionado, que se ferra tentando ajudar os outros, mas que não desiste de ser o melhor que pode porque não consegue ser de outro jeito.
Seu caráter foi parcialmente moldado pela criação de seus tios, Ben e May, que o criaram após o garoto ficar órfão e fizeram um ótimo trabalho em mantê-lo íntegro, esforçado, perseverante e com o coração no lugar certo.
A ideia de não ter escolha quando ele pode ajudar alguém virou sua realidade graças à famigerada frase do começo do texto. Se você tem algum tipo de poder, você tem responsabilidades com o que fará deles. É de simples compreensão, mas complexa aplicação.
O educador e filósofo pernambucano Paulo Freire popularizou uma frase que definiu os rumos da educação do Brasil – ao menos quando não tínhamos militares corruptos e imbecis no poder – e se prova verídica nos mais diferentes campos de atuação do pensamento filosófico:
Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.
BLAM! Segura essa. Aposto que você consegue pensar em alguns colegas de trabalho ou escola, familiares, amigos e pessoas com quem conviveu que se encaixam nesse grupo de oprimidos que se tornaram ou ainda sonham em ser o opressor. É uma frase à prova de falhas, pois relembra de forma simples que a educação é a base de tudo.
Se não houver um incentivo à compreensão de pensamentos e sentimentos como justiça, empatia, igualdade, liberdade, honestidade e respeito, não há outro caminho que não o da violência. E quantas guerras e conflitos não tiveram início justamente pela falta de aplicação desses conceitos básicos? Exemplos negativos não faltam na história do mundo, mas só os reconheceremos se conhecermos a história.
Só evitaremos cometer os mesmos erros se tivermos educação. E isso define o rumo de nossas vidas, apresentando novos caminhos e moldando nosso caráter com aprendizados advindos de experiências positivas com pessoas que nos incentivam a feitos positivos. Pessoas como Paulo Freire, pessoas como o Tio Ben.
No arco Com Grandes Poderes…, quadrinho escrito por David Lapham e desenhado por Tony Harris, a origem do Homem-Aranha é recontada, tendo como cenário os primeiros dias de Peter Parker como o herói.
O quadrinho causou certa polêmica em seu lançamento – e até hoje divide opiniões – porque mostra Peter como um adolescente cheio de ódio por causa do tratamento que recebe dos bullies de sua escola.
Ao ganhar seus poderes, o jovem sobrinho dos Parker constantemente pensa em formas de mostrar a todos que agora é um valentão, que pode derrubar e humilhar qualquer um que tentar fazê-lo parecer menor ou mais fraco. E é o que ele faz, de formas pequenas – mas danosas – como Peter Parker, e na frente de um público que o paga para bater em outras pessoas como Homem-Aranha.
Nosso protagonista tão amado entra num espiral de ódio, soberba, ganância e irresponsabilidade que é explorado por pessoas verdadeiramente ruins, que vivem desses sentimentos, e tem nesse arco um de seus momentos mais humanos e pedagógicos em sua história
É claro que, ao final, tudo fica bem, Peter lembra de seus principais fundamentos, se mostra preocupado com o que realmente merece sua atenção e dá um passo a frente para se tornar o homem admirável que viria a ser.
Mas é interessante pensar no conceito de liberdade sob uma ótica incômoda, como se ao alcançar a liberdade o indivíduo se dispor a cometer todos os erros possíveis apenas porque pode, independente de quem isso possa ferir.
Também nesse cenário o ponto de Paulo Freire é provado. Educação liberta, não a ilusão de respeito conquistado através do medo. Educação liberta, não a exclusão dos outros como seres pensantes e relevantes motivada pelo fato de ninguém ter prestado atenção quando você quis. Educação liberta, não a prestação de contas a quem não te enxerga como humano.
Educação pressupõe a liberdade de poder falhar, mas se permitir o tempo para corrigir e encontrar seu caminho.