Cobra Kai não tinha o direito de ser tão boa!
Em uma realidade onde, de cada 10 tentativas em trazer de volta franquias de sucesso, apenas 1 funciona (bem mais ou menos e sendo otimista), como essa série é possível?
Em que universo alguém um dia pensou que uma sequência direta da trilogia original de Karatê Kid seria tão incrível?
O que está acontecendo aqui? Será que acidentalmente caímos na linha do tempo mais brilhante ou algo assim?
*o texto a seguir apresenta pequenos spoilers sobre as duas temporadas de Cobra Kai.
Cobra Kai: é assim que se faz!
É assim que se faz uma sequência. Ao contrário do que querem nos convencer, não se deve “matar o passado”, se é que você me entende, o passado deve ser abraçado, entendido, e depois devemos construir em cima dele e expandi-lo, não destruí-lo.
Você deve estar se perguntando que diabos Karatê Kid tem a ver com Star Wars, mas pra mim é impossível não estabelecer essa relação entre ambos, pois, após assistir a série, só o que consigo pensar é que, se os três patetas (JJ Abrams, Rian Johnson e Kathleen Kennedy) por traz da trilogia de sequência de Star Wars tivessem tido 1% do planejamento, respeito, carinho e amor que vemos nos criadores de Cobra Kai, nós poderíamos ter tido filmes com o mesmo nível de qualidade da série, mas, em vez disso, ganhamos porgs.
Então, da próxima vez que quiserem fazer uma sequência para uma franquia bem estabelecida e amada, deem uma olhada no manual do Cobra Kai, combinado, seus imbecis?
Mas estou divagando e o fracasso vergonhoso e absoluto que foram esses filmes de “Star Wars” (aspas infinitas) são assunto para outra coluna.
Vamos voltar para a sequência perfeita que é Cobra Kai.
Expectativas
Assim como a maioria, a ideia de uma sequência para Karatê Kid é algo que me fazia tremer nas bases.
Afinal, acho que já estamos bem cansados de tomar na cara com os retornos, remakes, reboots e por aí vai dessas franquias, com adaptações mal feitas de livros, quadrinhos, videogames, etc, e a ideia de ver a caracterização do meu querido Daniel-san sendo completamente destruída em tela assim como aconteceu com a maioria de seus conterrâneos cinematográficos que voltaram nos últimos tempos (cof! Luke Skywalker cof!) parecia inevitável e não me agradava nem um pouco.
Qual não foi a minha surpresa ao dar uma chance para a série e descobrir que seus criadores, Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald, contra todas as probabilidades, entendem o porquê dessa história funcionar e a mensagem que ela quer passar, e decidiram honrar e dar continuidade a tudo isso.
A história
Cobra Kai se passa 30 anos após o torneio de caratê All Valley onde Daniel LaRusso (Ralph Macchio) derrotou Johnny Lawrence (William Zabka), o valentão que o atormenta durante o filme todo.
Hoje em dia, Daniel é um homem com dois filhos, um casamento feliz e uma concessionária de sucesso. Ele conquistou o futuro brilhante que todos imaginávamos que ele teria.
Johnny seguiu pelo caminho oposto. É um alcoólatra com um casamento fracassado e um filho com quem não convive e que não quer vê-lo nem pintado de ouro.
Ainda preso ao passado e à derrota que sofreu nas mãos de Daniel, após ser obrigado a ver o rosto de seu rival em outdoors por toda a cidade como lembretes constantes de tudo o que perdeu, Johnny resolve reabrir o dojô de caratê onde costumava treinar e tentar retomar os dias de glória que ele julga terem sido tirados dele por culpa do aprendiz do Sr. Miyagi.
A partir daí acompanhamos os dois homens e como a rivalidade que é reacendida com a reabertura do dojo afeta suas vidas.
Execução
Desde o início fica claro que a série quer equilibrar ambos os personagens, explorando os prós e contras de suas filosofias e, principalmente, demonstrando que nem tudo é tão preto e branco como era no filme original.
A exploração dessa área cinza é feita com maestria.
Tanto Johnny quanto Daniel demonstram ter seus lados bons e ruins, nenhum é necessariamente melhor do que o outro.
Os aspectos negativos de Johnny são um pouco mais óbvios: alcoolismo, vulgaridade, fuga das responsabilidades parentais, imaturidade.
Mas também vemos que ele é uma pessoa em busca de redenção, retificação dos erros do passado e mudanças, além de aos poucos demonstrar o quanto realmente se importa com e quer ajudar seus alunos, apesar de seus métodos nada ortodoxos.
Acontece o mesmo com Daniel. Ele não é mais o herói oprimido. Agora ele é um cara que se acomodou um pouco demais em seu privilégio de classe alta, que mima os filhos além da conta, que é um pouco impulsivo ao julgar uma pessoa com quem não convive há 30 anos, e que nem sempre considera a fundo todas as repercussões que suas ações para derrotar o antigo rival podem ter.
Mas, ainda assim, ele é 100% o Daniel que conhecemos e amamos do Karatê Kid, o tipo de cara que acolhe uma criança em sua própria casa sem hesitar, que quer ajudar as pessoas e realmente fazer alguma diferença.
Ambos os personagens são extremamente humanos, com várias camadas e nuances, com grandes falhas e grandes encantos, e a série é realmente boa em destacar tudo isso.
Diferentes, mas iguais
Johnny e Daniel são os heróis de suas próprias histórias e os antagonistas das histórias um do outro, de forma que fica impossível não torcer para que ambos sejam bem-sucedidos em suas jornadas, ao mesmo tempo que queremos que eles enxerguem um no outro tudo o que nós enxergamos em ambos e desenvolvam a amizade que é constantemente sugerida ao longo da história.
Afinal, ambos os homens têm exatamente o mesmo objetivo de ajudar pessoas, eles apenas estão caminhando em direção a esse objetivo de formas diferentes.
E são exatamente as diferenças entre eles que fariam com que fossem uma ótima dupla.
Conforme a série vai descascando as camadas de ambos e mostrando todas as suas facetas, vai ficando claro o quanto eles têm em comum e, na verdade, são apenas dois lados de uma mesma moeda.
O karatê que Daniel aprendeu com o Sr. Miyagi era baseado apenas em defesa.
O karatê que Johnny aprendeu com Kreese era baseado apenas no ataque.
Ambos são mestres em suas respectivas formas de luta e fica claro que juntos se complementariam perfeitamente.
A série parece estar caminhando para um futuro onde teremos uma junção dos métodos Miyagi-do e Cobra Kai, mas, obviamente, ainda há um longo caminho pela frente.
Os obstáculos
O fato dessa união ainda estar longe de acontecer se deve em larga medida ao fato de que, ao contrário do Sr. Miyagi, Kreese era um sensei extremamente tóxico.
Apesar de seus métodos terem ajudado Johnny em muitos aspectos, eles também o prejudicaram em vários outros, algo que é muito bem explorado na série.
Johnny tem boas intenções, mas ele próprio ainda não sabe exatamente como filtrar o que deve passar para seus alunos e o que não deve.
Ele só está começando a descobrir quais partes de seus métodos funcionam e quais prejudicam, ele está tentando ser o sensei que gostaria de ter tido, mas ainda não sabe 100% quem é essa pessoa, o que leva a muitos equívocos que são representados muito bem através do efeito que Johnny tem sobre seus alunos.
Ao mesmo tempo que ele lhes dá confiança e os ensina a se defender, ele também, acidentalmente, os deixa arrogantes, transformando-os cada vez mais nos próprios babacas e valentões dos quais queriam se livrar e que faziam de suas vidas um inferno.
Daniel também ainda está aprendendo o tipo de sensei que é, mas as consequências de seus erros são bem menos tóxicas e devastadoras do que as dos erros de Johnny, graças ao ensinamento amoroso que recebeu do Sr. Miyagi.
Essa situação fica muito bem representada com a dinâmica entre Miguel e Robby.
Os novos Karatê Kid
Miguel é o primeiro aluno de Johnny. Já Robby, que é filho de Johnny, decide se tornar aprendiz de Daniel, uma sacada de gênio dos criadores e que gera uma série de conflitos muito bem desenvolvidos e explorados.
Miguel é Daniel LaRusso se ele tivesse sido criado e nutrido na filosofia tóxica do Cobra Kai de Kreese.
Ele deixa de ser um garoto legal e amigável para se tornar um idiota. Ele é essencialmente o que Daniel teria se tornado sob a tutela de Kreese.
Mas, infelizmente, Johnny só percebe que está perpetuando esta filosofia tóxica para Miguel tarde demais.
Robby, por outro lado, é filho de seu pai. Ele é um marginal revoltado e agressivo, ele é Johnny, mas ele descobre o caratê Miyagi-do.
Através dos ensinamentos e apoio de Daniel, ele se torna uma boa pessoa, encontra equilíbrio em sua vida, passa a apreciar o trabalho árduo e honesto. Ele é o que Johnny teria se tornado sob a tutela de Miyagi.
Isso se encaixa perfeitamente num dos principais temas que a série aborda, o da importância das figuras paternas que temos em nossas vidas e que as influenciam para melhor ou para pior.
Além disso, o fato de Daniel se tornar na vida de Robby o exemplo que Johnny deveria ser, acrescenta ainda mais uma camada à rivalidade entre Johnny e Daniel.
Pois, apesar de se ressentir com Daniel por esse ter, de seu ponto de vista, tomado seu lugar, é impossível negar a influência extremamente positiva que Daniel tem na vida de seu filho.
Outros destaques
Quem também merece destaque na série é a família que Daniel formou.
Ele tem uma esposa que é 100% sua parceira, ela o ama e apoia, mas também sabe chamá-lo a razão quando sua impulsividade o faz perder o foco.
Em um muito bem-vindo desvio do padrão quando se trata de casamentos na ficção, temos aqui a representação de um relacionamento entre duas pessoas que se amam, se respeitam e que estão juntas porque escolheram isso.
Além disso, temos também os filhos do casal: Samantha, a mais velha, e Anthony, o mais novo.
A princípio, Samantha parece que vai ser a típica adolescente insuportável da grande maioria das séries americanas, mas logo fica claro que, assim como todos os outros personagens, ela também está tentando descobrir que tipo de pessoa quer ser e, como boa LaRusso que é, está sempre tentando aprender com os próprios erros e evoluir.
Ela tem um vínculo muito especial com Daniel e que só é ainda mais reforçado quando ela decide virar aprendiz do pai junto com Robby, em mais uma sacada de gênio da série ao fugir do lugar comum e, em vez de fazer com que os filhos dos rivais também se tornassem rivais, fez deles aliados.
Anthony não tem tanto destaque na série, por enquanto, mas os poucos momentos em que aparece são sempre muito espirituosos e engraçados, além de representarem muito bem alguns aspectos de sua personalidade e apontarem alguns problemas que acredito que serão trabalhados mais pra frente na história.
Ele é um menino sedentário que não tem interesse nenhum por caratê, a não ser que seja no videogame, e ignora Daniel completamente na maior parte do tempo.
Em contrapartida, está pronto para ir direto na jugular de qualquer um que falar ou fizer qualquer coisa contra seu pai, o que leva a alguns dos momentos mais engraçados da série.
Esse humor também é algo que é muito bem utilizado pelos roteiristas e aparece através de todos os personagens, mas principalmente através de Johnny e seus alunos, cada um uma figura a parte.
Acho que a melhor forma de descrever a série talvez seja dizer que é um drama representado com humor e leveza.
Assistir ou não assistir? Eis a questão
Voltando a o que disse no começo da crítica, em meio a tantas sequências, remakes, reboots e adaptações que são uma decepção atrás da outra, Cobra Kai foi uma surpresa extremamente bem-vinda, nos dando uma história que sabe utilizar a nostalgia, mas sem depender dela para avançar a trama e funcionar.
Consegue ser inovadora, surpreendente e atual sem destruir o que veio antes, pelo contrário, elevando, expandindo e aprofundando a história que quer continuar.
Se, assim como eu, você cresceu assistindo Karatê Kid, e a jornada de Daniel-san e do Sr. Miyagi possui um lugar especial no seu coração, pode embarcar sem medo nessa nova aventura que foi feita com todo o carinho e amor que essa história icônica e seus fãs merecem.